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Por falar em patrimônio imaterial
Fui visitar a exposição de Allora & Calzadilla na galeria Kurimansutto, na Cidade do México. Não sabia nada do trabalho. Nem dos artistas. O convite exibia a imagem de um compasso e a exposição era intitulada compass. Imaginei algo geométrico. Também não conhecia a galeria. Encontrei um belo cubo branco, aparentemente vazio, e pensei: mais uma dessas propostas de matriz conceitual que não oferecem nada à visão. Mais uma tentativa de manobrar a frustração do público em não encontrar nada à vista.
Além desse trabalho, havia também um vídeo que ficava em outro cômodo, ao qual não destinei muita atenção e lamento por isso. Encontrei também uma sonoridade que não conseguia precisar de onde vinha. Busquei pelas caixas de som, mas não as vi. Daí, perguntei para a funcionária da galeria sobre o trabalho. Perguntei se a obra era aqueles sons. Eu não saberia exatamente descrevê-los, mas havia algo como um registro de fricção. Ela me contou que havia um bailarino no piso superior executando uma coreografia, de maneira que só podíamos perceber sua presença por indícios. Eu não percebia indícios além da sonoridade, e fiz mais algumas perguntas. Disse-lhe que se não soubesse disso, se não tivesse essa informação, pensaria/acreditaria que o som era uma “simples” gravação. Percepção precipitada.
Fiquei muito instigada com a proposta. Uma coreografia que acontecia à revelia da presença de público. Independentemente de haver ou não visitantes na galeria. Ou seja, o trabalho estabelecia uma situação que poderia ser experimentada em um determinado período de tempo: os horários previamente determinados nos quais os bailarinos se revezavam na execução da coreografia. Compass estabelecia as condições de experimentação de um local específico. A quantidade exígua de pessoas que poderia acessar aquela experiência - além de mim, somente um ou dois visitantes estavam na galeria – contrastava com a sofisticação, elaboração e investimento da proposta. Como não conseguia entender a maneira pela qual o bailarino podia acessar o piso superior, já que não havia uma escada imediatamente visível, perguntei à funcionária novamente. O que vemos é somente um teto de madeira, muito bem acabado, e por desconhecer a galeria pode-se pensar que o teto é um elemento arquitetônico definitivo. A funcionária então mostrou-me uma escada bem escondidinha que dá acesso a esse piso de madeira, o qual vemos como teto. Ofereceu-me, portanto, a possibilidade de ver o bailarino - talvez por me julgar cética - mas logo mudou de ideia, dizendo que isso não podia. Eu concordei. Afinal, mostrar-me o bailarino parecia consistir numa espécie de desvio da proposta original do trabalho, esta, aquela que nos apresenta uma determinada realidade da qual certos aspectos estão inacessíveis.
Eu já estava me retirando, ia me despedindo quando a moça me chamou e conduziu-me novamente à escada. Eu disse: Uai! Mas não pode! Ela disse: “digamos que é uma exceção”. Eu me senti privilegiada, mas temi que isso pudesse macular minha experiência ou compreensão do trabalho. Cheguei a pensar rapidamente se deveria aceitar a oferta. Mas, aceitei. No topo da escada havia uma portinha, algo como o acesso a um sótão, um desses lugares secretos onde guardamos objetos que não tem mais utilidade, coisas que não tem lugar na demanda imperativa de nossas vidas. Então ela abriu a portinha e eu pude ver um espaço muito amplo, muito bem acabado, bonito, no qual um bailarino executava movimentos com os pés, utilizando um sapato próprio para sapateado americano. A fricção referia-se ao atrito do sapato cortando o solo de madeira. Não era uma coreografia tradicional de sapateado americano, era uma experiência sonora distinta, que desafiava a tradicional noção de melodia. O bailarino também me viu. A cena foi rápida, afinal era uma exceção. Eu não me esforcei para prolongar a experiência, porque isso parecia-me algo ilegal, ou mesmo porque talvez ela pudesse desvanescer-se caso eu insistisse em fixá-la por meio da visão. Mas, a imagem fugaz daquele espaço amplo povoado por um bailarino solitário eu ainda tenho comigo. A sensação de uma experiência da ordem da exceção é como um patrimônio particular. Algo que esse texto busca conservar.
PS - Jennifer Allora was born in Philadelphia, Pennsylvania, in 1974. Guillermo Calzadilla was born in 1971, in Havana, Cuba. They live and work in San Juan - Puerto Rico, and represented the USA in the Bienal de Veneza - 2011.