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Arte e vida e política: Havana e São Paulo
Incluir explicitamente o termo “Cuba” no tema “Arte e vida” da 8ª Bienal de Havana parece ter sido uma tentação a se evitar em boa parte dos textos do catálogo publicado pelo Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam (2003). Como se fosse tarefa somenos institucional, daquelas que se costuma abordar delicadamente nas apresentações, ficou a cargo do presidente do Conselho Nacional das Artes Plásticas, Rafael Acosta de Arriba, mencionar, de passagem, a retirada de patrocínios holandeses como parte de retaliações da União Europeia a Cuba.
Ao menos para o observador externo, 2003 está compreendido em um período diferente na luta cubana contra o imperialismo, provavelmente o mais peculiar desde a débâcle do Leste Europeu: o 11 de setembro de 2001 fez com que o “combate ao comunismo” fosse preterido na agenda agressiva norte-americana, ocasionando um certo “descanso midiático” a Cuba; mas, em contrapartida, foi a partir desse período que a classificação “Estado patrocinador do terrorismo” pelos EUA (desde 1982) passou a repercutir de forma mais intensa nas demais relações internacionais da ilha, bem como foi esse o ano de maior atividade nos nefastos camp da Prisão de Guantánamo, demonstrando o quão maleável é a moral em relação à vida nas instituições do direito internacional. Assim, o “descanso midiático” durou pouquíssimo, bastando citar a enorme repercussão do artigo em que José Saramago diz-se traído em seus sonhos por Cuba, devido à execução de três sequestradores; e o espaço exíguo dado à entrevista que se seguiu, na qual Saramago reafirma: “Não rompi com Cuba. Continuo sendo um amigo de Cuba, mas me reservo o direito de dizer o que penso, e dizer quando entendo que devo dizê-lo”.
“Arte e vida” numa Bienal de Havana faz com que pensemos quase automaticamente na sobrevivência em Cuba e na sobrevivência de Cuba. Então, o que poderia muito bem ser um dualismo mais ou menos aceite em outros lugares do mundo, ganha bordas lisas e cortantes graças à dimensão ideologicamente dicotômica que cada um dos termos adquire, juntos ou separadamente, em Cuba. Com isso, o tema parece ganhar uma significação mais aguerrida, nos levando a compreender de maneira mais séria a afirmação de Acosta de que a Bienal deve sobreviver porque é “uma operação estratégica da cultura cubana”. Manter o evento que transforma Havana em uma grande galeria e que projeta os jovens artistas cubanos ao cenário internacional é uma questão de sobrevivência de um povo.
Nesse sentido, “arte e vida” em Havana é muito diferente de “arte e política” em São Paulo. Quanta distância! E fica fácil compreendemos o gradativo desuso do binômio “arte e política” em prol da expressão “política das artes” no discurso dos curadores da 29ª Bienal de São Paulo. Em todo lugar, “vida” é política, mas em Cuba ela é obviamente politizada; aqui, entretanto, até “política” deve ser despolitizada... Se estivéssemos falando de simples relações de causa e efeito concluiríamos tão-somente: projetos distintos de “arte”.
Sobre Cuba, Rhana Devenport propõe a ideia de uma esperança que pode ser simbolizada por pequenos gestos de compaixão. A 29ª Bienal de São Paulo foi inaugurada em um dos momentos de maior sentimento de esperança da história brasileira, alcançado (se governos podem fazer isso:) com pequenos gestos governamentais. E, logo em seguida, passou a funcionar num dos momentos de maior apreensão quanto ao futuro dessa mesma esperança, ameaçada que está pelos inúmeros atos de ódio que marcaram a campanha presidencial de 2010, especialmente em seu segundo turno. Essa mudança não parece ter afetado absolutamente a Bienal de São Paulo... Novamente: projetos distintos de “arte”.
Pela tradição sistemática, sempre que se pesa a relação do conceito arte com qualquer outro conceito, busca-se estabelecer uma noção de autonomia. Mas isso só vale se a tal outra coisa está no campo da moral ou do entendimento. É impossível – e podemos recorrer a Kant, inclusive – separar arte e vida, ou ao menos estética e vida, já que aisthesis significa justamente “sensibilidade”, do que se deduz um corpo situado no espaço e no tempo animando a intuição e daí a reflexão, que são formas de apreensão e consciência do particular limitadas pelo “estar no mundo” (Deus não tem sensibilidade).
Hoje, parte dessa sistematização só parece fazer sentido nos alfarrábios filosóficos da luta contra a metafísica (contra a Ideia); mas outra parte, aquela que diz respeito à moral, à razão prática, sempre terá lugar, notadamente na definição do que se ocupa a história da arte – bastando, como exemplo, citar Barroco e Contra-Reforma. Além disso, não faz muito tempo, Greenberg, crítico genial, mas kantiano pouco hábil, voltou a ser discutido por Danto, justamente para propor o fim das grandes narrativas artísticas. (Pode ser interessante verificar que, apesar da distância entre os conceitos arte de Greenberg e Danto, ambos parecem se filiar ao mesmo projeto “arte”.)
Voltando ao gesto compassivo proposto por Devenport, devemos nos perguntar qual é a questão verdadeira: é se a arte será capaz de sobreviver ao ódio na Nova Zelândia e Austrália, no Iraque, na Índia e em Cuba? Ou trata-se da capacidade da arte para por fim aos diversos ódios? Como ambas são questões marcadas por forte utopia, não acredito na solução fácil da simples agregação.
A pertinência da primeira não envolve apenas a sobrevivência dos objetos artísticos, nem mesmo sua permanência nas moradas originais ou por direito (lembrando: a formação do conceito arte deve muito ao desterro dos objetos e à sua transferência para os museus); mas principalmente a possibilidade de se fazer arte após uma catástrofe – que é a pergunta de Eugenio Montale, “a poesia ainda é possível? –, implicando uma certa aderência da noção de autonomia.
A segunda se refere obviamente à capacidade transformadora da arte e está ligada, se não a um atrelamento, ao menos a um envolvimento com um projeto político-social, que pode muito bem ser conservador aos olhos de hoje – como o engrandecimento (se moral, convém saber qual moral é esta, veremos) dos poderes da mente pela arte ou por algo como o “regime estético” de Schiller. Mas que pode ser também progressista (aos olhos de hoje) como no caso do Construtivismo Russo. E pode, ainda, descambar para o pior atrelamento possível: a representação passadista de um esteriótipo de povo revolucionário.
Além disso, a capacidade da arte mudar alguma coisa de maneira progressista parece bastante limitada, principalmente, se pensarmos apenas em obras isoladas. Mas, claro, a Bienal de Havana, tomada em seu conjunto, parece ter poder para transformar Cuba, seja localmente e provisoriamente, mobilizando para si os cidadãos cubanos, seja de forma mais ampla, ajudando a mudar a visão que se tem da ilha e do sofrimento de seus cidadãos ante o bloqueio imposto pelos EUA. (E as anedotas sobre calças jeans só comprovam isso.)
Assim, só parece adequado desejar uma fusão – sistemática, inclusive – entre arte e vida se tal “vida” for compreendida em um sentido comunitário, menos relacionada ao ponto de vista do indivíduo artista, implicando mais na ação deste como produtor (no sentido benjaminiano) que na produção de objetos que se assemelhem a estes que estão aí, na vida.
Dito de outra forma, implica considerar a dimensão ética dessa “vida” que se funde à arte (se formos diferenciar ética e moral, então o que se propõe ao artista é que escolha algo além do “bem viver” individual).
Sem mais adiamento, o que se impõe é a discussão de um trinômio, arte e vida e política, como propõe Luis Camnitzer. Isso porque a definição apenas binomial, seja ela pela convergência, seja pela divergência, não tem dono: a junção serve tanto à utopia de purificar a arte pela vida, quanto à reificação dessa pretensa pureza alcançada pela arte; e a separação, de maneira semelhante, pode servir à utopia da melhoria da vida através da arte, bem como à definição clara dos produtos artísticos (em relação aos demais produtos que estão na vida). E assim a diferença entre Tucumán Arde e Allan Kaprow, exemplos de Camnitzer, se reduziria à antinomia anti-estetização / formalismo, fazendo com que a politização da arte seja vista mais como uma forma de anti-arte, que como uma posição política por fazer arte como produtor, incluindo nessa decisão até mesmo a possibilidade formalista.
Sem a política como terceiro termo, arte e vida se fundem apenas no movimento amplo de reificação que inclui ambas: “[...] esqueceu-se que a arte é corruptível e que a vida é corruptível”. Em princípio, não há pureza salvacionista em nenhum dos lados, daí a proposição de que é desejável a integração pelos processos e não pelos mecanismos, sem cair no logro de uma “a-ética” que só significa a possibilidade de definição a posteriori da ética da obra, tal como ocorreu, por exemplo, com a assimilação mercadológica da ambiguidade de Warhol. (E por isso Rubens Gerchman, dentre outros, não interpretou mal a pop art; a interpretou “melhor”.)
Guardadas as diferenças, mas considerando também as semelhanças de país subalterno e ameaçado pelo ódio de classe e pelo imperialismo, sem dúvida, a 8ª Bienal de Havana nos oferece um bom paralelo para verificar o projeto de “arte” que envolve a 29ª Bienal de São Paulo.
Belo Horizonte, 26 de outubro de 2010 (às vésperas da eleição).