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Depois da etnografia (no lugar do patrão): diálogo cruzado com Santiago Sierra e outros artistas “pós-etnográficos”, a partir de Foster e Benjamin
Foster faz menção naquele texto a vários trabalhos e artistas da época, mas muitos outros vêm à memória: as casas-abrigo ambulantes feitas para moradores de rua em Nova Iorque, por Wodiczko, os painéis comemorativos do grupo Repo-History recuperando a história daquele Manhattan esquecido dos pobres, dos imigrantes e dos escravos dos séculos XVIII, XIX e primeiras décadas do XX... a lista seria bem longa, e passaria também, no Brasil, pela dupla de Mau Wau e os seus trabalhos com os imigrantes nordestinos em São Paulo, ou com os camelôs, no contexto do evento Arte e Cidade, etc.
Política depois da utopia. Se já estava ultrapassado querer Mudar o Mundo ainda podíamos, como bons samaritanos, bons trabalhadores sociais e bons parceiros das ciências sociais, continuar fazendo a nossa contribuição, senão para transformar a realidade, pelo menos para sensibilizar a sociedade, para dar visibilidade aos invisíveis e esquecidos da terra. Sensibilização, Visibilidade foram de fato palavras chaves na época. Mas por quê estamos conjugando os verbos em tempo passado? Não estamos falando de algo que continua sendo válido até hoje? Dezessete anos depois da implosão dos macro-relatos do socialismo; quarenta anos depois de maio de 68, não é precisamente nessa pequena escala das microfísicas do poder onde devemos agir? Se o poder não é só uma macro estrutura, se ele se articularia, sobretudo, na escala imperceptível do microcosmo[2], não seria esse precisamente o lugar a partir do qual seria possível mudar a ordem das coisas? Nesse pequeno universo da vida cotidiana?
Desde o próprio título deste artigo falamos já de um depois, mas desta vez para nos referir a outra virada que vários trabalhos atuais, e dos últimos anos, estariam evidenciando. Um depois já não da utopia, mas daquela etnografia proposta por Foster como elo condutor de um momento da história da arte contemporânea. Uma estratégia que, se bem continua atuante, pareceria estar esgotada ou que, pelos menos, estaria sendo assinalada de maneira crítica por vários trabalhos e estratégias de produção que este curto texto tem a intenção de comentar.
Mas, antes de entrar em assinalamentos e detalhes, queremos sublinhar outro elemento importante no texto de Foster: o lugar do artista. A sua análise tem como ponto de partida uma conferencia de Benjamin lida em 1934 em Paris no Instituto de Estudos do Fascismo. Em meio àquele momento crucial na história do século XX, Benjamin se perguntava sobre o lugar do artista. No próprio olho daquele furacão que pouco tempo depois tomaria a vida do próprio Benjamin, vários artistas e vanguardas já tinham feito uma escolha clara: Brecht, os futuristas russos, mas também Picasso e muitos outros estavam alinhados do lado do comunismo e da esquerda, enquanto que Marinetti, e grande parte do movimento futurista, estavam do lado do fascismo. Na Alemanha de Hitler o caso que continua, até hoje, sendo talvez o mais emblemático é o da diretora de cinema Leni Riefenstahl e o seu conhecido filme de propaganda nazista O triunfo da Vontade.
O artista não podia ficar impassível, devia tomar partido e situar-se num lugar, mas em qual? Ao lado do poder (como fez Riefenstahl, por exemplo)? Ou ao lado dos pobres e dos operários? E, se sentado ao lado do proletariado, qual deveria ser o seu papel? Virar uma espécie de patrono ideológico? Por difícil, paradoxal e contraditório que fora esse lugar, ao longo do último século, vários movimentos, escolas e artistas tentaram construí-lo. Alguns, como Beuys, criaram os seus próprios interlocutores: a ecologia, por exemplo, alinhando-se do lado das lutas ambientais e formando assim uma partilha própria. Foi talvez nessa criação de outros interlocutores que esteve o segredo da virada etnográfica assinalada por Foster: a partir de diversos ângulos e localizações (minorias raciais, sociais, sexuais, lutas de gênero, etc.) continuou sendo possível assumir o chamado de uma responsabilidade social que acabou virando sempre compromisso e engajamento político.
É esse lugar que nos interessa: ele é paradoxal, porque leva implícita, por definição, uma certa “superioridade” (Benjamin falava do patrono ideológico) que poderia se tornar impulso messiânico (não seria o próprio Beuys um exemplo?), mas paradoxal também porque a própria arte acaba virando frequentemente um discurso elitista, ou sendo absorvida e tornando-se mercadoria, ou sendo um paliativo para tranquilizar as más consciências. Ainda mais: ela acaba virando moda, escola e tendência estética. Ou pior ainda: a rebeldia tolerada serve para demonstrar tolerância e democracia no seio de um capitalismo cultural que é na verdade cada vez mais totalitário e mais centrado no único deus no qual é permitido acreditar hoje: a todo-poderosa lei da oferta e da demanda.
O political correct como moeda universal, como boas maneiras indispensáveis, como moda e como terno obrigatório para entrar nas galerias e nos eventos. E é talvez aí que a necessária reação pendular apareça. A história da arte pareceria estar ligada sempre a este principio de ação e reação cíclico: um novo movimento, uma nova tendência, uma mudança aparecem sempre opondo-se ao anterior, reagindo contra ele para criar e evidenciar assim um espaço próprio de diferenciação.
Talvez seja nesse lugar de assinalamento complexo (irônico? sarcástico?) do political correct, onde poderíamos situar o trabalho de Santiago Sierra. A virada antropológica parece continuar-se nele, mas curiosamente invertida: trata-se ainda, claramente, de assinalar e de trabalhar com populações marginais e vulneráveis: desempregados, exilados, adictos, prostitutas, imigrantes, minorias étnicas e culturais, populações subalternas para empregar a linguagem dos Estudos Culturais, mas desta vez não para lutar por elas, para melhorar as suas condições ou aliviar a sua exclusão. Não se tem mais a pretensão de guiá-las ou de tornar-se seu patrono ideológico. Trata-se de repetir, com o distanciamento que permite a “Arte”, a galeria, o sistema arte, os mecanismos de exploração que os dominam. Remunerá-los sim (de fato os projetos de Sierra são apresentados por ele próprio como “estética remunerada”) mas não para melhorar a sua condição econômica, porque o pagamento é muito similar aos salários de exploração que eles receberiam em uma troca “normal” de força de trabalho. Ainda mais: em alguns trabalhos se ressalta, precisamente, a mais-valia que o artista obtém: quanto o “operário” contratado recebe e quanto pode ser o ganho obtido pelo artista na realização da obra.
Então, se na virada etnográfica o lugar do artista engajado continuava sendo ao lado do operário, já não como classe, mas como minoria, como população marginal vulnerável, qual seria o lugar deste “novo” artista “pós-etnógrafo”? A resposta é evidente: ele vira Patrão, já não só no sentido figurado do protetor e guia ideológico, assinalado por Benjamin, mas, literalmente, como O Explorador. Ele senta agora, claramente, NO LUGAR DO PATRÃO. E a partir daí, como os filósofos cínicos, ridiculariza as pretensões messiânicas, a falsa boa consciência, as intenções daqueles que, talvez só por moda, por estar a tom, por oportunismo pretendem salvar um mundo que é, por definição, injusto, desigual e violento... o mundo do capitalismo neoliberal que ficou como única opção.
Até aqui, talvez, tudo bem, um pouco de humor e de questionamento são sempre bons e refrescantes. O problema vem nas conseqüências que esta virada pós-etnográfica poderia trazer. Porque achamos que esta poderia ser a lógica subjacente em outros trabalhos polêmicos mais recentes que, ao nosso juízo, estão evidenciando a continuidade e impacto cada vez maior desta virada que chamamos aqui de pós-etnográfica.
Um destes projetos seria as Dog Carpets de Ondrej Brody e Kristofer Paetau[3], apresentado em 2007 nas Bienais de La Paz, Bolívia, e de Praga, República Checa. Os artistas, como o próprio nome do projeto assinala, fizeram tapetes com a pele de cachorros de rua que são sacrificados pela municipalidade na capital da Bolívia. Eles certamente não sacrificaram os animais, simplesmente pesquisaram nos circuitos da própria estrutura de saneamento urbano para obter as peles de uns animais que, de qualquer forma, são sacrificados semanalmente por dezenas. Como Sierra, não são eles, evidentemente, que criaram um circuito que estava funcionando muito antes da proposta se materializar. Eles simplesmente o assinalam e sublinham num trabalho que mimetiza e repete todos os mecanismos do poder. O resultado não podia ser mais paradoxal: à maneira do clichê dos carpetes dos caçadores europeus na África, as peles dos animais conservam a cabeça, mas já não para falar da coragem e habilidade de um intrépido caçador, mas da estranha humanidade de um animal que, demasiado perto do homem na cultura ocidental, tem sido completamente afastado da alteridade que nos separa do mundo da “natureza”. Um cachorro já praticamente não é um animal, ou só à metade. A outra metade é já completamente humana. Mas trata-se também de uma humanidade falsa, complexa e hipócrita. É claro que o domínio do homem sobre a natureza, sobre as outras espécies está feito, ante todo, de crueldade e sevicia. Como nos trabalhos de Hirst, os animais sacrificados na galeria são assassinados por milhares cada dia fora dela, sem que ninguém reclame, proteste ou se indigne. Os compramos nos supermercados, em embalagens assépticas e nos nutrimos deles.
Mas interessa-nos aqui, sobretudo, assinalar mais uma vez a continuidade das estratégias “etnográficas”: o trabalho de campo, a identificação de um grupo vulnerável, o assinalamento, a “visibilização” de uma “injustiça” ou de um ato de crueldade social ignorado ou esquecido. Mas, mais uma vez, tudo aquilo não para “solucionar”, “aliviar” ou melhorar, nem sequer para se “solidarizar” ou para se identificar com o outro e sentir-com-ele (esse é o significado original da palavra compaixão: sentir com). A estratégia dominante agora parece ser a de se sentar ao lado do carrasco. No mesmo lugar daquele que infringe o sofrimento, ao lado do agente que provoca a injustiça.
E isto se faz talvez mais evidente, mais extremo, e por conta disso mais chocante, no trabalho apresentado pelo artista costarriquenho Guillermo Habacuc Vargas, que pegou um cão da rua e amarrou-o em uma galeria até o animal morrer de fome. Convidado pela Bienal de Arte Centro-Americana de Honduras, a “obra” provocou todo tipo de protestos e reações; acho que porque, desta vez, nem a caricatura grotesca está lá para atenuar a crueldade. Não há ironia nem sarcasmo. Ficou só o sadismo, nu.
A distância com o trabalho de Santiago Sierra é enorme, isso é claro, não quero nem compará-los em termos dos seus status como “obras de arte”. Mas acho preocupantes as semelhanças. Se o lugar do artista-etnógrafo era paradoxal e perigoso, o de artista chefão (e carrasco-explorador) é ainda mais paradoxal e perigoso. Sobretudo quando penso nos limites. Porque todos sabemos: o próprio de cada movimento, tendência escola, descoberta é ir até os próprios limites do caminho começado, até esgotá-lo. E quais poderiam ser aqui os limites que esgotem esta virada “pós-etnográfica”? Um grupo de prostitutas menores de idade pagas para fazer blow jobs aos visitantes da galeria na noite da vernissage? As apostas estão abertas, e a criatividade humana é muito rica. Basta ler a grande obra do Marques de Sade para comprová-lo! Lá, também, o caminho é inesgotável, e cheio de promessas de nuances e novas descobertas!
[1] Hall Foster. O artista como Etnógrafo. Tradução para o português. Revista Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, UFRJ, n.12, p. 136-151, 2005.
[2] A citação é clara: às microfísicas do poder de Foucault. Ver FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. Mas também FOUCAULT Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis, Editora Vozes, 2007.
[3] Informação ampliada sobre o projeto pode ser consultada no site www.brodypaetau.com/, ou ainda no site da galeria Kressling, da Eslováquia, www.gallerykressling.sk.