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Sobre o filme: "Nós que aqui estamos, por vós esperamos"
“Nós que aqui estamos, por vós esperamos” – filme documentário / cinema memória de Marcelo Masagão, 1999.
Esta é a ficha técnica. Mas qual seria a identidade de uma obra tão intensamente perturbadora e comovente como esta? Seria uma obra política? Poética? Crítica? Cinema Verdade? Aula de História? Filme de Arte? Cult?
Eu diria que é uma obra política-poética-crítica-cine verdade-aula de história-filme de arte-cult, de uma profunda “eloquência muda”.
Um filme que fala de memória e, portanto, de identidade. Um filme que mostra que somos todos plateia e atores; que a história do mundo é feita das histórias dos outros e da nossa própria história; que “o ser humano só existe com os outros” (como dizia Paulo Freire) e que, por outro lado, o coletivo só faz sentido quando cada pessoa tem a sua individualidade. Um filme que fala de diversidade, diferença e alteridade, e das consequências da intolerância e indiferença de seres humanos diante de outros seres humanos. Uma obra que fala de relações de poder – de tiranos, dominados, líderes, e inocentes, traçando um panorama de identidades e diferenças cultural, social e economicamente estabelecidas durante toda uma época – o breve século XX. Por tudo isso, diria que é uma obra POLÍTICA.
Trabalhando imagens em preto e branco ou envelhecidas, tendo como pano de fundo uma trilha sonora belíssima e comovente – por vezes nostálgica e melancólica – de Win Mertens (exceção para a sequência Garrincha-Fred Astaire, em que os efeitos sonoros e música são de André Abujamra), exibe a vida como um poema visual, sem diálogos. Alguns poucos textos curtos aparecem escritos na tela de quando em vez, como palavras determinantes, identificadoras, importantes para conferir sentido e ampliar em muito a força das imagens. O modo de apresentação das cenas (imagens superpostas que vão se sucedendo num piscar de olhos, com música ao fundo) reforça a ideia de brevidade e confere um caráter onírico à vida, transmitindo a sensação do quanto passamos rápido por este mundo – como se fosse um sonho –, ao mesmo tempo em que concede um aspecto sagrado às coisas cotidianas: trabalho, arte, lazer e morte. Por isso diria que é uma obra POÉTICA.
Tecendo um discurso onde a dualidade criação-destruição e as pulsões de vida e morte dialogam o tempo todo para, enfim, afirmar, reafirmar e confirmar a finitude da condição humana (enquanto presença e permanência material de um corpo físico neste planeta), o filme declara e exibe essa condição como parte inerente da vida e em diversas versões, deixando claro que, independentemente de nossa classe social, etnia, sexo, religião ou nacionalidade; de sermos anônimos ou famosos, ricos ou pobres, bons ou maus, vamos morrer – esse nosso corpo vai passar, vai se acabar, e o destino final de todo corpo é o mesmo. Para que a gente não se perca disso – deslumbrados com nossas realizações ou aterrorizados com nossas atrocidades – as imagens de cemitérios, túmulos e cruzes são recorrentes, bem como o detalhe das imagens de retratos fixados em lápides, que nos lembram que são corpos de pessoas que estão ali – pessoas que viveram histórias únicas.
O filme se desenrola em cenas através das quais nos deparamos conosco, colocamo-nos diante de nós mesmos – homens que somos – mirando-nos em espelhos, já que nos tornamos humanos a partir do outro e do que vemos no outro. Assim, deixa-nos claro que se existe diversidade cultural e social, ela expressa sob a superfície nossa natureza humana comum.[1] E que se a construção de identidades e diferenças é fruto de um mundo cultural e social em que os processos de produção social envolvem relações de poder, arbitrariedades, sistemas de significação e luta pela atribuição de sentido, lembra-nos que cada ser humano é um mundo, mas, ao mesmo tempo, parte de um único organismo: “é apenas um dos fios de uma rede, e o que quer que ele faça à rede, fará a si mesmo”.[2] Por isso é uma obra CRÍTICA.
A vastidão humana desfila suas histórias diante de nossos olhos – nomes, fotografias, biografias, datas de nascimento e morte, “uma acumulação de pequenas memórias”[3], retratando as dificuldades e alegrias do viver – o ser humano visto como tudo e nada ao mesmo tempo, na sua grandeza e na sua pequenez, na sua condição de anônimo e pessoa especial –, cada um sabendo “a dor e a delícia de ser o que é”[4].
As inúmeras cenas de guerras mostram-nos pessoas na condição de pedaços de carne, capazes de matar e morrer para defender idéias de homens que não respeitam a vida nem o ser humano – é a verdadeira ignorância humana. Apesar das muitas cenas de morte apresentadas, a idéia é a de que, em uma guerra, não são “simplesmente” mortas milhares de pessoas, mas sim que são interrompidas milhares de histórias, sonhos, vidas que são importantes para alguém em algum lugar. Estes sonhos, os feitos, os laços de afeto com a família ficam como legados de uma vida cuja presença física (o corpo) passou, mas deixou história.
Uma obra cujo objetivo é atingir a natureza humana: CINE VERDADE.
Outras cenas mostram como as distâncias físicas “diminuíram” (em função dos meios de locomoção), enquanto as distâncias entre os homens se converteram em abismos e as contradições e paradoxos se tornaram evidentes: um operário pode passar a vida fabricando um bem de consumo ao qual nunca terá acesso; um homem pode morrer na cadeira elétrica sem ter luz elétrica em casa; um camponês pode nunca ter visto uma imagem de TV e nunca ter ido à guerra, mas adorar coca-cola (algumas coisas conseguem ser onipresentes...). Da mesma forma, o homem passa a buscar Deus em inúmeros rituais e religiões, mas crianças continuam abandonadas nas ruas, à espera de... Deus? (ou seria à nossa espera? “Vós sois deuses.”[5])
“O HISTORIADOR É O REI; FREUD, A RAINHA”
Estas palavras abrem o filme. Penso que, talvez, pelo fato de que quem tenha a palavra seja o rei, embora por trás de um rei haja sempre a influência de uma rainha. A voz, a fala e a escrita que registram a História e chegam ao público, de forma factual, consciente e objetiva, vêm do historiador, mas Freud explicaria o que está por trás da História, revelando a subjetividade e os instintos, trazendo à tona o inconsciente, interpretando sonhos e esclarecendo motivos (apesar do risco de o determinismo pregado por Freud isentar o ser humano de suas responsabilidades e desconsiderar seu livre-arbítrio).
Imagens, palavras (“pequenas histórias/grandes personagens; pequenos personagens/grandes histórias; memória do breve século XX”)[6], música acelerada e o inexorável movimento do pêndulo do relógio marcam a passagem do tempo. A industrialização traz a velocidade – na locomoção (metrô), na comunicação (telefone), no trabalho (produção). O conhecimento e as idéias são gerados em profusão e registrados instantaneamente (máquinas fotográficas). Valores, tradições, poderes e saberes estabelecidos são desconstruídos: Picasso revoluciona as artes; Freud, o entendimento da mente e da subjetividade humanas; Lênin, a política, com o socialismo; e Einstein, a ciência. Yuri Gagarin(pai) conheceu a luz elétrica em 1931, enquanto Yuri Gagarin (filho) conheceu o espaço em 1961.
A frase de McLuhan (“Os homens criam as ferramentas; as ferramentas recriam os homens”) aparece lembrando-nos de nossa responsabilidade diante da criação de coisas que vão mudar toda a nossa relação com as pessoas e com a vida e que, ao mesmo tempo, vão nos tornar escravos delas.
E assim nos são apresentados muitos outros fatos históricos, momentos e personagens – de comemorações a tragédias, de vitórias a derrotas, de progressos inimagináveis a retrocessos inaceitáveis, de operários e soldados a governantes e mitos. É a AULA DE HISTÓRIA.
Marcelo Masagão combina imagens, criando associações e gerando significados que nos levam a uma transcendência da nossa leitura do cotidiano, dos fatos, da história e da vida, de maneira belíssima. Executando seu ofício com maestria, através da arte do cinema instaura novos modos de olhar o mundo e nos permite enxergar as coisas através desses novos filtros. Alguns exemplos:
1) No trecho do filme que mostra a transição da era clássica para o acelerado século XX, utiliza como metáfora uma sequência em que o bailarino Nijinski aparece dançando vestido como um fauno. Se no início ele é só leveza e graciosidade, ao final aparece deitado/exausto/caído (síndrome do guerreiro cansado?[7])
2) A cena do alfaiate pulando da Torre Eiffel com uma roupa especial (1911), com o objetivo de voar e, como era de se esperar, caindo como um chumbo, é emendada na cena da explosão da Challenger (1986). Se, no caso do alfaiate, o sonho somado à ingenuidade/ inocência termina em morte, no caso da Challenger, o sonho somado à ciência/alta tecnologia/conhecimento também termina em morte. Como a querer nos mostrar que o homem é falível no que faz, que o poder da ciência tem limite, que não somos capazes de dominar tudo – a começar pelo nosso próprio corpo –, que diante do momento, da presença e da necessidade inexorável da morte, não existem bobos nem doutores, somos todos impotentes e iguais – a fragilidade da vida do corpo diante da morte. (Mas Marcelo não abre mão do lirismo: na cena do alfaiate, para o texto que aparece escrito – “objetivo imediato:” – a resposta é a imagem de um pássaro voando, que surge no canto superior da tela, significando VOAR, referindo-se ao sonho humano de voar como um pássaro, mas, também, remetendo-nos à idéia do espírito livre. Associação similar reaparece em uma das cenas finais, quando a imagem de Arthur Bispo do Rosário, vestido com o manto que confeccionou para se encontrar com Deus, é superposta pela imagem de um homem com asas postiças tentando voar – apesar de ”preso” na demência da loucura, Bispo tinha o espírito livre de um artista.)
3) A sequência que mostra os rostos em anamorfose dos ditadores Hitler, Stalin, Mao Tse-Tung, Mussolini, Pol Pot, Franco, Idi Amin, Ceausescu, Pinochet e vários outros como personalidades mal resolvidas e paranoicas, com conceito exagerado de si mesmos, manias de perseguição e grandeza, ele emenda à imagem de halterofilistas, fazendo poses e admirando a si mesmos: narcisismo.
4) A belíssima sequência que combina imagens de Fred Astaire dançando e de Garrincha jogando futebol: dois balés, duas danças da vida, dois gênios – cada qual em sua arte. Poesia pura.
São “as possibilidades sensíveis da imagem, que nos permitem fruir os efeitos de sentido, por vezes difíceis ou impossíveis de serem verbalizados”[8].
É um FILME DE ARTE.
Um filme que foi exibido em poucos cinemas e ficou pouco tempo em cartaz, embora tenha recebido vários prêmios. Uma obra voltada, em primeira instância, não para o mercado, mas para levar as pessoas a refletirem a respeito do modo como conduzem sua existência (aí incluídos pensamentos, sentimentos, palavras e ações); interessada na formação e informação do indivíduo; uma obra que vai muito além da mera diversão. A sensação de incômodo, tristeza, beleza, indignação, melancolia e perda de fôlego diante de um filme como este, que é como se fosse um “soco no estômago”, às vezes retratando o peso da vida, às vezes a insustentável leveza do ser, e, ao final, “colorindo” a morte, afirmando-a como vida (o filme, todo em preto e branco, torna-se colorido na última cena, que apresenta a imagem de um cemitério), nos coloca em contato com o que temos (somos?) de mais humano. Mesmo as cenas e imagens banais se revestem de uma aura, de uma grandeza e significado surpreendentes. É um filme CULT.
Em uma das cenas finais, em que aparece um homem sentado na engrenagem da roda de uma locomotiva como se esta fosse uma gangorra, nosso mito fundador emerge, com a legenda: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz” (frase curiosamente atribuída a Maiakovski, 1907). A referência à alegria do povo brasileiro, que fez da felicidade sua escolha e da vida uma festa, vivendo de esperança e fé, desperta nosso patriotismo e nos enche de ternura pela nossa gente.
“Nós que aqui estamos, por vós esperamos” tenta traçar o perfil, a identidade (do homem) do século XX; buscando mostrar seu papel na construção de identidades futuras e sua falta de consideração em relação às identidades e diferenças individuais de sua época.
Se é característico da identidade ser “uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo”[9], o que a faz “instável, contraditória, fragmentada, inacabada”[10], tudo é e todos somos isto ou aquilo, dependendo dos olhos de quem vê, da cabeça de quem lê, do coração de quem sente e do momento que se vive.
Essa foi uma leitura pessoal do filme “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”, uma porta aberta dentre as infinitas possibilidades, entendendo-o como obra simbólica e desencadeadora de transformações, capaz de contribuir para a compreensão e construção de identidades individuais e coletivas, encaradas enquanto projeto contínuo e processo de reflexão permanente.
Setembro de 2009.
(adaptado de texto da própria autora, escrito em de junho de 2006)
P.S.: Esse filme me recordou e trouxe de volta a vivência de uma mania antiga, que é a de andar pelas ruas (a pé, de carro ou de ônibus) observando as janelas das casas e edifícios, imaginando quem vive ali, que pessoa ou família, com que hábitos, sonhos, alegrias ou tristezas; que mundo se organiza e se desenvolve ali, dentro de cada um daqueles espaços, por trás daquela infinidade de pequenos retângulos...
[1] Tomaz Tadeu da Silva, A produção social da identidade e da diferença, p.98 in Tomaz Tadeu da Silva (org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, Petrópolis, Vozes, 2000.
[2] Trecho da carta do Chefe Seattle ao Governo dos Estados Unidos da América, citada por Joseph Campbell em Joseph Campbell, O Poder do Mito, São Paulo, Palas Athena, 1990, p. 34.
[3] Cristian Boltanski citado por Marcelo Masagão no filme Nós que aqui estamos, por vós esperamos, 1999.
[4] Caetano Veloso, Dom de Iludir.(letra de música)
[5] Jesus, Evangelho (Novo Testamento).
[6] Marcelo Masagão, Nós que aqui estamos, por vós esperamos, 1999. (filme)
[7] Teoria atual segundo a qual deve-se tomar cuidado com pessoas ainda jovens com um currículo muito extenso, pois podem já ter dado tudo de si fazendo mil coisas ao mesmo tempo, e podem não conseguir mais render muito em novas atividades, embora tenham bagagem e conhecimento para tal.
[8] Joe Marçal Gonçalves dos Santos, Cinema e Estética do Estranhamento em Andrei Tarkovski, Mesa Redonda Estéticas do Estranhamento – IX Encontro da SOCINE, 19 a 22 de outubro de 2005, UNISINOS / São Leopoldo/RS.
[9] Tomaz Tadeu da Silva, A produção social da identidade e da diferença in Tomaz Tadeu da Silva (org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, Petrópolis, Vozes, 2000, p.96
[10] Idem, ibidem, p.97.
Comentários
Parabéns, ótima análise!
Queria primeiramente agradecer por sua análise desse filme que tanto gosto e que pude melhor compreender lendo o seu texto. Ademais, queria só acrescentar que a cena do homem na locomotiva vem do filme The General (1926), caso queira dar uma olhada posteriormente. Vale bastante a pena, uma preciosidade do cinema!
Ótimo
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DOCUMENTARIO MARCELO MASAGAO
Perfeito! colocou de forma muita clara o que o filme traduz. Certeza é calro qu para mim esse trabalho é cheiro de possiblidades de relfexao a cad vez que o revemos.
Identifiquei-me ao final quando a autora do texto fala da sua mania de olhar janelas de casa e imaginas as vidas que alí estao. Eu vivo automaticamente essa mania em especial vendo casa antigas e tento imaginar asa pessoas, as emoções, os sentimentos que elas abraigaram no pasado. Quantas vidas passaram por alí.